Agora os arquivos eram uma bagunça de fazer dó.
As memórias não estavam organizadas por ordem alfabética, assunto, ou qualquer marcador.
Na arrumação, o General deixou à mão aquilo que lhe interessa e colocou lá no fundão das gavetas tudo que não gostava de lembrar.
Por descuido de algum neurônio desavisado, uma lembrança importante ia parar no sótão, ou no porão e aí era uma trabalheira doida para achar a marvada; em contrapartida, outras vinham à tona sem ninguém chamar, os seios de uma sirigaita francesa, um regalo nos tempos do “Fuhrer”.
Durante o conflito, o General carimbou muitos passaportes para o além.
Na tentativa de banir da memória aqueles que bateram as botas sob sua encomenda e apartar um eterno lamentar de prisioneiros, o General montou em sua cabeça um campo de concentração, para onde enviava as lembranças que mais lhe desagradavam.
Por mais que erguesse cercas de arame farpado, e montasse guarda, sempre alguma maldita prisioneira escapava.
A fugitiva lhe percorria a mente feito um estilhaço, transformava-se em uma torrente que não raramente jogava-o atônito na cadeira de balanço, até que a lembrança rebelde fosse novamente confinada.
Desenvolveu o General uma lerdeza seletiva para localizar suas memórias e evitava fuçar nos arquivos bélicos.
A moça da TV chegou de surpresa e fustigou o General com perguntas sobre a guerra, os campos, a SS...parecia um interrogatório na tenda do inimigo.
Foi uma negação. O General era capaz de desfilar um rosário de nomes e patentes na sua língua mãe, mas quando se tratava de suas a (des)venturas na guerra, sob o pretexto da idade, dizia com um sotaque indiscutível que só se lembrava de uma fumaça densa que o sufocava aos poucos.
Enxergava-se sob a névoa, de uniforme e botas poeirentas, lembrava do cheiro da morte nas trincheiras, avistava a terra de ninguém semeada de soldados caídos, e num piscar de olhos estava o General à beira de uma grande vala, destino final de incontáveis corpos esqueléticos.
Depois do fiasco, a jornalista mudou a pauta para não perder a viagem, e lá se foi, furiosa, com uma história bucólica qualquer para editar.
O velho tornou a soltar o pastor alemão no quintal, e sentou-se na varanda.
Com voz de comando enfileirava as memórias fugitivas para novamente enviá-las ao campo de concentração.
O armistício tardou a chegar, e as memórias prisioneiras foram sufocadas em uma câmara de gás.
O General preservou do seu holocausto apenas as lembranças das raparigas de Paris e algumas ruas de Berlim.
A governanta falou que ele malucou de vez.
* Versão 2019, Causo publicado na Revista do Arquivo nº08
( http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revista_do_arquivo/08/)
terça-feira, 16 de abril de 2019
quinta-feira, 4 de abril de 2019
ÁGUA SAGRADA



Forte é o fruto da montanha, barulho de água doce não sabe parar, faz eco no vale, verte cheiro de molhado que seca em pedra quente de sol.

Imaculada água da Mantiqueira, no desfrute de regar tudo em seu caminho, banho de gelo aluminado em arrepio.
Por gosto de deixar levar, vão os ombros ao fluir transparente da água bonita que acode ao clamor, e abre picada na mata, virada em generosa cachoeira, corredeira, e remanso.

Quando o frio de viver fizer o beiço roxo, vai à beira, esparrama em grama fresca que o sol tudo há de aquecer.
*Águas de Marambaia
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