terça-feira, 16 de abril de 2019

AS PRISIONEIRAS DO GENERAL

Agora os arquivos eram uma bagunça de fazer dó.
As memórias não estavam organizadas por ordem alfabética, assunto, ou qualquer marcador.
Na arrumação, o General deixou à mão aquilo que lhe interessa  e colocou lá no fundão das gavetas tudo que não gostava de lembrar.
Por descuido de algum neurônio desavisado, uma lembrança importante ia parar no sótão, ou no porão e aí era uma trabalheira doida para achar a marvada; em contrapartida, outras vinham à tona sem ninguém chamar,  os seios de uma sirigaita francesa, um regalo nos tempos do “Fuhrer”.
Durante o conflito, o General carimbou muitos passaportes para o além.
Na tentativa de banir da memória aqueles que bateram as botas sob sua encomenda e apartar um eterno lamentar de prisioneiros, o General montou em sua cabeça um campo de concentração, para onde enviava as lembranças que mais lhe desagradavam.
Por mais que erguesse cercas de arame farpado, e montasse guarda, sempre alguma maldita prisioneira escapava.
A fugitiva lhe percorria a mente feito um estilhaço, transformava-se em uma torrente que não raramente jogava-o atônito na cadeira de balanço, até que a lembrança rebelde fosse novamente confinada.
Desenvolveu o General uma lerdeza seletiva para localizar suas memórias e evitava fuçar nos arquivos bélicos.
A moça da TV chegou de surpresa e fustigou o General com perguntas sobre a guerra, os campos, a SS...parecia um interrogatório na tenda do inimigo.
Foi uma negação. O General era capaz de desfilar um rosário de nomes e patentes na sua língua mãe, mas quando se tratava de suas a (des)venturas na guerra, sob o pretexto da idade, dizia com um sotaque indiscutível que só se lembrava de uma fumaça densa que o sufocava aos poucos.
Enxergava-se sob a névoa,  de uniforme e botas poeirentas, lembrava  do cheiro da morte nas trincheiras, avistava a terra de ninguém semeada de soldados caídos, e num piscar de olhos estava o General à beira de uma grande vala, destino final de incontáveis corpos esqueléticos. 
Depois do fiasco, a jornalista mudou a pauta para não perder a viagem, e lá se foi, furiosa, com uma história bucólica qualquer para editar.
O velho tornou a soltar o pastor alemão no quintal, e sentou-se na varanda.
Com voz de comando enfileirava as memórias fugitivas para novamente enviá-las ao campo de concentração.
O armistício tardou a chegar, e as memórias prisioneiras foram sufocadas em uma câmara de gás.
O General preservou do seu holocausto apenas as lembranças das raparigas de Paris e algumas ruas de Berlim.
A governanta falou que ele malucou de vez.

* Versão 2019,  Causo publicado na Revista do Arquivo nº08
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/revista_do_arquivo/08/)

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